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segunda-feira, 20 de abril de 2009

ERA BONITO SER HISTÉRICA

“Beijarei o punhal que matar Pinheiro Machado” — soluçou o orador.
E,  realmente,  enfiou  a mão  no  colete,  ou  cinto,  e  de  lá  arrancou,  com  ágil
ferocidade, o punhal homicida. Logo,  à vista de  todos, beijou,  chorando, o
punhal. As  lágrimas deslizavam pela  face  cava. E o orador, prolongando o
efeito  cênico,  ainda  ficou,  por  algum  tempo,  com  o  punhal  erguido  e
profético. Um uivo unânime subiu das entranhas do silêncio. O comício veio
abaixo. Sujeitos atiravam para o ar os chapéus de palha.
Mas resta de pé a pergunta: — Por que exatamente o punhal? Por que
o ódio havia de ter a forma esguia e diáfana do punhal? 1915. Era o Brasil do
fraque e do espartilho. Nas salas de visitas, havia sempre uma escarradeira
de louça, com flores desenhadas em relevo. Eu tinha meus três anos e estava
em  Pernambuco.  Três  anos.  Aos  três  anos,  o  sujeito  começa  a  inventar  o
mundo. Minha família morava na praia. E eu começava a inventar o mundo.
Primeiro, foi o mar. Não, não. Primeiro, inventei o caju selvagem e a pitanga
brava.
Para os meus três anos, o mar, antes de ser paisagem, foi cheiro. Não
era concha, nem espuma. Cheiro. Meu pai, antes de ser figura, gesto, bengala
ou  pura  palavra,  também  foi  cheiro.  Ninguém  tinha  nome  na  minha
primeira  infância. A estrela-do-mar não se chamava estrela, nem o mar era
mar.  Só  quando  cheguei  ao  Rio,  em  1916,  é  que  tudo  deixou  de  ser
maravilhosamente anônimo.
Eis  o  que  eu  queria  dizer  —  o  primeiro  nome  que  ouvi  foi  o  de
Pinheiro Machado. Alguém se chamava Pinheiro Machado. A princípio, ele
não  foi um destino, um perfil, um  fraque, mas  tão-somente um nome. Um
nome  solto no ar, quase um brinquedo auditivo. Eu não  inventara ainda a
morte, não inventara ainda o punhal, nem a palavra “defunto”.
Escrevi, não  sei onde, que  foi um  suicida que me  revelara a morte e

me ensinara a morrer. Engano, engano. Foi Pinheiro Machado. Sim, Pinheiro
Machado. E, súbito, eu aprendia que o homem morre e que o homem mata.
Ainda  hoje,  e  até  nas  minhas  crônicas  esportivas,  falo  muito,  com  uma
constância obsessiva, no assassinato de Pinheiro Machado. Uns acham graça
e ninguém  entende  a  insistência  cruel. Ah,  eu  teria de  explicar que há,  em
qualquer  infância,  uma  antologia  de  mortos;  e,  para  o  menino  que  fui,
Pinheiro Machado é um desses mortos fundamentais.
Mas  repito  a  pergunta: —  Por  que  havia  de  ser  o  punhal?  Pinheiro
Machado podia ser assassinado a tiro, a bala. Pouco antes, um jornalista fora
assassinado em Pernambuco. Chamava-se Trajano Chacon. Três ou quatro se
juntaram e o mataram, a cano de chumbo. Não faca, punhal ou revólver. No
caso  de  Pinheiro  Machado,  quero  crer  que  o  punhal  convinha  mais  à
retórica. Na  época do  soneto,  era mais parnasiano. O  orador  podia  tirar  o
punhal, beijá-lo, quase lambê-lo.
Muitos  e  muitos  anos  depois,  me  vejo  subindo  a  escadaria  da
Biblioteca Nacional. Estou crispado como o criminoso que vai reler a notícia
do  próprio  crime.  Lá  dentro,  peço  a  coleção  do Correio  da Manhã  de  1915.
Dou o mês do assassinato. Não me  lembro se é permitido fumar na sala de
leitura; em caso afirmativo,  tiro um cigarro e o acendo  (guardo o palito na
própria  caixa). Enquanto não vem  a  coleção,  começo  a  tecer uma pequena
fantasia homicida. Não  é mais o Manso de Paiva, mas  eu que me  escondo
atrás  de  uma  coluna.  Entra  Pinheiro  Machado,  de  fraque.  Os  rapapés  o
envolvem:  —  “Senador!  Senador!”.  É  agora.  Corro  e  mato  Pinheiro
Machado.  Sou  assassino.  Em  seguida,  imagino  a  experiência  inversa,  de
vítima.  A  dor  fulminante  da  punhalada.  Não  tenho  tempo  nem  para  o
espanto, nem para o grito.
O  funcionário  trouxe  a  coleção.  Começo  a  ficar  tenso.  Encontro  a
edição  do  crime.  Primeiro,  passo  os  olhos  no  dia,  mês  e  ano  (sou  um
fascinado pelas datas dos velhos  jornais e dos velhos túmulos). A manchete
rasga as  suas oito  colunas: — ASSASSINADO o GENERAL PINHEIRO MACHADO!
Ao  bater  estas  notas,  sinto  o  abismo  entre  as  duas  manchetes:  —  a  de
Pinheiro Machado era um berro gráfico, um uivo  impresso; a de Kennedy,
estupidamente  impessoal,  crassamente  informativa.  Ah,  as  manchetes  de
hoje não se espantam, nem se desgrenham, nem reconhecem a catástrofe.
O  Correio  da Manhã  conta  tudo.  Estou  vendo  Pinheiro Machado,  de

fraque,  chegando  ao Hotel  dos  Estrangeiros.  Lá  está  o  seu  lindo  perfil  de
moeda. Vinha falar com dois políticos de São Paulo. Era um voluptuoso, um
lúbrico do Poder. Sua conquista política era um jogo amoroso. O olho ficava
mais doce,  lascivo,  translúcido. Amorosamente, Pinheiro Machado abriu os
braços,  enlaçando  os  dois  políticos.  E  assim,  entre  um  e  outro,  caminha  o
general, muito olhado. Claro que todos se voltavam para ver o homem que,
segundo os comícios e os jornais, era o autor de todos os presidentes.
Pouco  antes,  chegava  da  Europa  Irineu Machado,  um  dos  grandes
tribunos da  época. Era homem de  falar dez horas  sem parar  (antigamente,
tínhamos mais  oradores  do  que  hoje  camelôs  de  caneta-tinteiro).  E  Irineu
Machado  disse,  em  comício:  —  “Matar  Pinheiro  Machado  não  é  ser
assassino.  É  ser  caçador”.  Ele  não  estava  improvisando  nada. A  frase  fora
criada, recriada, até chegar à sua forma exata, inapelável e assassina.
Era apenas uma  frase. Mas aí é que está: — nada se  fazia então sem
frase. Para tudo era preciso uma frase. Repito: — uma frase tanto fazia uma
adúltera como um ministro. E aquilo que Irineu Machado berrara foi de uma
prodigiosa eficácia homicida. Caçar Pinheiro Machado, simplesmente caçar.
Manso de Paiva estava ouvindo. E se não fosse Manso de Paiva seria outro
Manso  de  Paiva.  Até  as  senhoras  eram  Mansos  de  Paiva.  A  punhalada
amadurecia no coração do povo. Mas volto ao Hotel dos Estrangeiros. Passa
o caudilho com os outros dois. Ouvia-se o seu riso cálido, vital. Uma dama
olha Pinheiro por detrás do leque como uma Butterfly.
Tudo  teve a progressão  fulminante da catástrofe. Manso de Paiva sai
da coluna; corre,  tira o punhal e o enterra até o  fim nas costas do caudilho,
pouco  abaixo  da  nuca.  Pinheiro  soluça:  —  “Mataste-me,  canalha!”.  Mas
Osvaldo  Paixão,  contemporâneo  do  episódio,  orador  de  vários  comícios
ferocíssimos,  retifica.  Segundo  ele,  as  últimas  palavras  de  Pinheiro  foram
estas: — “Apunhalaste-me, canalha!”. Quero crer que ele tenha dito apenas:
“Canalha”. Mas cabe perguntar: — que canalha? Ou, por outra: o caudilho
estava com dois paulistas. Morreu certo de que um deles era o “canalha”.
(Preciso  falar de Guimarães Rosa.) Ah, em 1915, as mulheres  tinham
um repertório de gritos que as novas gerações não usam, nem conhecem, Era
bonito  “ser  histérica”.  Muitas  simulavam  seus  ataques,  como  o
dostoievskiano Smerdiakov. Mas, quando Pinheiro caiu, as damas presentes
não  fingiam  nada.  Elas  se  esganiçavam,  e  rolavam  pelas  cadeiras,  ou

sapateavam como espanholas. Naquela época, uma notícia levava meia hora
para ir de uma esquina à outra esquina. Mas toda a cidade ou, mais do que
isso, o Brasil soube do assassinato, com uma instantaneidade brutalíssima.
E ninguém percebeu que,  com Pinheiro Machado, morria  também o
fraque.
[4/12/1967]

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