Saiba onde tem o melhor preço antes de comprar

terça-feira, 21 de abril de 2009

PIRÂMIDES E BISCOITOS

Antes  de  falar  de  João  Guimarães  Rosa,  quero  dizer  ainda  duas
palavras sobre o velho Rio. (Em nosso idioma, duas palavras são duzentas.)
O brasileiro cospe menos, diria eu. Quanto às nossas mulheres, nem cospem.
Mas, no tempo do fraque e do espartilho, a cidade expectorava muito mais.
Lembro-me de antigas bronquites, de  tosses  longínquas, asmas nostálgicas.
Nas  salas  da  Belle  Époque  era  obrigatória  esta  figura  ornamental:  —  a
escarradeira de louça, com flores desenhadas em relevo (e pétalas coloridas).
O  curioso  é  que  a  ficção  brasileira  da  época  não  tenha  notado  o
detalhe.  Não  há,  em  todo  o  Machado,  uma  vaga  e  escassa  referência,  e
repito: — a escarradeira não existia para o autor, para os personagens, nem
para  o  décor  dos  ambientes. Mas,  em  1915,  quando  assassinaram  Pinheiro
Machado, ou em 1916, quando vim para o Rio, as famílias tinham pigarros,
tosses,  que  as  novas  gerações  não  conhecem.  Dos meus  amigos  atuais,  o
único que costuma tossir é o João Saldanha.
Bem me  lembro da primeira vez em que  fui ao cinema. 1916. Eu era
um garoto de seis anos, e tudo me espantava. Quando apagou a luz, nasceu
na  treva  uma  misteriosa  e  tristíssima  fauna  de  tosses.  Depois  do  filme,
saímos,  eu  e meu  irmão Milton. Olhei  e vi: —  lá  estava  ela, num  canto da
sala de  espera. Era  escarradeira  e  flor: —  subia por um  caule  fino para  se
abrir em  lírio. Larguei-me do  irmão e  fui  lá cuspir. Passei a mão na boca e
voltei. Vinha  feliz,  envaidecido,  realizado. Ainda me voltei, da porta, para
vê-la. Linda, linda, imitando um lírio ou um copo-de-leite.
Também me vejo na calçada da rua Alegre. Os mesmos seis anos. Era
pequenino  e  cabeçudo  como  um  anão  de Velásquez.  E me  fascinava  ir  de
uma esquina a outra esquina, sempre pelo meio-fio. Eu me equilibrava, no
meio-fio, como se este  fosse  fino e vibrante como um arame. Mas eis o que
importa dizer: —  fazia esse número acrobático, cuspindo sempre. Também

me vejo numa sacada, cuspindo na cabeça dos que passavam.
Bem.  Preciso  agora  explicar  que  toda  essa  ternura  antiga  me  veio,
outro dia, num boteco. Entrei  lá para comprar cigarros e  fósforos. Um pau-
d’água está resmungando: — “Não gosto de nortista”. Passou os olhos nos
presentes  e  repetiu,  num  riso  encharcado: —  “Não  gosto  de  nortista”.  E
súbito me viu. Vem para mim; disse,  cara  a  cara  comigo: —  “Eu nasci  em
casa  e  com  parteira”.  Fala  com  uma  vaidade  feroz  e  jucunda.  Mas  é
exatamente o meu caso. Também nasci em casa e com parteira.
E assim o pau-d’água anônimo instalou em mim todo o apelo da Belle
Époque. Parto em casa, velório em casa, escarradeira na sala, bronquite das
tias —  todo  esse  conjunto  de  relações  era  o Rio  de Machado  de Assis,  de
Pinheiro  Machado,  de  Rui  Barbosa.  As  famílias  usavam  as  bacias  em
abundância. Hoje uma simples bacia deflagra em mim todo um movimento
regressivo, todo um processo proustiano.
E  já me  ocorre um  incidente parlamentar que  ouvi  contar na minha
infância. Era no velho Senado. Pinheiro Machado está na  tribuna. Fala,  fala
com a nobre insolência gaúcha. Mais adiante está Rui Barbosa, “o maior dos
brasileiros vivos”. De repente Pinheiro Machado diz: — “Se eu me manter”.
Rui  cortou,  com  triunfante  crueldade: —  “Decerto  Vossa  Excelência  quer
dizer ‘mantiver’”. A lambada doeu na carne e no brio do caudilho. Vacila ou
nem isso; deu a resposta fulminante: — “Vossa Excelência pode me corrigir,
e é bom que o faça. Pois, enquanto Vossa Excelência aprendia a falar certo e
bonito, eu matava e morria na Guerra do Paraguai”.
Chego  finalmente  a  João Guimarães Rosa. O  curioso  é  que  o  nome,
por  extenso,  como num  cartão de  visitas,  soa  falso. Guimarães Rosa devia
chamar-se  apenas,  e  para  sempre,  Guimarães  Rosa.  O  João  lá  não  devia
estar. Lembro-me de que no sábado, véspera da morte,  fui à casa do Hélio
Pellegrino.  E  tivemos  uma  conversa  obsessiva  sobre  o  Grande  sertão  e  seu
autor.  O  Hélio  deu  a  idéia: —  “Falo  com  o  Callado  para  promover  um
almoço  com  o  Guimarães  Rosa.  Você  topa?”.  Claro,  claro.  E  assim
combinamos o almoço com o morto do dia seguinte.
Coisa curiosa. O Hélio Pellegrino é um admirador nato. Quando não
há quem admirar, sente-se um frustrado e um vencido. Todavia, o seu juízo
final  sobre  Guimarães  Rosa  não  era  um  juízo  final,  mas  um  ponto  de
interrogação. O Hélio não  sabia  o  que pensar,  o  que dizer. Admitia  que  o

Grande sertão fosse um esmagador monumento estilístico. O próprio autor já
dissera:  —  “Faça  pirâmide,  não  faça  biscoito”.  Pois  seu  livro  era  uma
pirâmide  indubitável. Mas  a  linguagem  rosiana  fazia  o  Hélio  sentir  uma
nostalgia  cruel  de  Graciliano,  sim,  da  seca  transparência  de  Graciliano.
Talvez  todo  o  Guimarães  Rosa  fosse  uma  inútil  obra  imortal.  Juntei  as
minhas dúvidas às do Hélio. Exagerei as minhas.
No  domingo,  fiz,  como  sempre,  a Grande  Resenha  Esportiva  da  TV
Globo. Em seguida, a  fome da madrugada  levou-me ao Antonio’s. Comigo
ia o dr. Hílton Gosling. O Guimarães Rosa  já estava morto e eu não  sabia.
Assim  como  Paris  tem  seus  cafés  literários,  temos  os  nossos  cafés,  bares,
restaurantes  ideológicos. O Antonio’s  é  um  deles.  Lá  as  nossas  esquerdas
vão dizer seus palavrões e babar seus pileques. Tomo uma sopa que, aliás,
não foi uma sopa — foi um omelete com presunto de Parma. E ninguém me
falou  nada. Não  houve  um  pau-d’água  ideológico  que me  cochichasse: —
“Olha. Morreu o Guimarães Rosa”.
Saio do Antonio’s e venho na  carona  fraterna do dr. Hílton Gosling.
Quando é o João Saldanha que me traz, depois da Grande Resenha, costumo
dizer: —  “Espera que  eu  entre. Senão me  assaltam”. Também o dr. Hílton
esperou, de faróis acesos, que eu abrisse o portão. Grito ao amigo: — “Deus
te abençoe”. O que me pergunto é se, por coincidência, pensei no autor de
Sagarana. Não,  não  pensei. Minha mulher,  Lúcia,  só  dorme  depois  que  eu
chego. Veio abrir a porta dos  fundos  (aos domingos subo pelo elevador de
serviço  e  entro pela  cozinha). Beijo-a, de passagem. Ela  já  sabe, mas  ainda
não me diz nada.
Naquele momento, uma coisa não me saía da cabeça — o omelete que
comera no Antonio’s. Era um veneno para  a úlcera.  Já  a  caminho de  casa,
vim  pensando: —  “Chego  e  tomo  um  copo  de  leite”. O  leite  acalmaria  as
danações  da  úlcera. O  antiácido  tem  sido  a minha mais  recente  fé.  Bebi  o
leite gelado, achei que o omelete estava derrotado e passei para a sala. Foi aí
que  Lúcia  começou:  —  “Que  coisa  horrível  aconteceu  com  o  Guimarães
Rosa!”. Eu desfazia o nó da gravata  e parei: —  “Que  foi?”. E  ela: —  “Não
sabia? Morreu”. Ainda perguntei: — “Desastre?”. Disse: — “Enfarte”.
As más notícias agridem em primeiro  lugar a minha úlcera. Sinto os
seus arrancos. O copo de leite não ia adiantar nada. Fiz várias exclamações:
— “Que coisa! Não é possível!”. E só faltei perguntar: — “Morreu como, se

estava vivo?”. Lúcia  foi dormir. Fiquei  rodando pela sala. Eu  tivera, com a
notícia,  duas  reações: —  primeiro,  de  pusilanimidade.  O  enfarte  alheio  é
uma  ameaça  para  qualquer  um.  A  nossa  saúde  cardíaca  é  um  eterno
mistério, um eterno suspense. Depois do medo, veio algo pior e mais vil: —
uma espécie de satisfação, de euforia. Ninguém me via, só eu me via. Vim
para  a  janela  olhar  a  noite. Cada  um  de  nós  tem  seu momento  de  pulha.
Naquele instante, eu me senti um límpido, translúcido canalha.
[5/12/1967]

0 comentários:

Saiba onde tem o melhor preço antes de comprar
Design by Dzelque Blogger Templates 2008

EXPRESSO REDE - Design by Dzelque Blogger Templates 2008